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quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Os desafios do raciocínio público

Leitores, perdoem minha negligência. Tenho novamente ocupado grande parte do meu tempo com assuntos não muito interessantes – para não dizer burocráticos- (colegas de classe que o digam) e acabei por largar o blog às moscas. Pretendo retomar as atividades hoje, espero que em grande estilo, refletindo um pouco sobre um assunto que muito me intriga e apaixona: o limite da atuação repressiva dos agentes públicos e seus desdobramentos.
O texto é fruto de um artigo que li há aproximadamente um mês no jornal O Estado de S. Paulo , intitulado “ Bandidos travestidos de autoridade”, escrito pelo delegado da Polícia Federal Jorge Barbosa Pontes.
O artigo questiona, dentre outras coisas, o papel que os agentes públicos corruptos representam na manutenção do crime organizado (mais especificamente o tráfico de drogas), e afirma que a corrupção de tais agentes é flagelo muito mais destrutivo que o próprio tráfico de drogas nos morros: “Neste momento é importante para o contribuinte entender que o policial corrupto é tão ou mais vil e deletério que o traficante de drogas ou de armas. Se retirarmos das ruas os traficantes sem alvejarmos os agentes públicos comprometidos que os mantêm e os protegem, o trabalho estará longe de se completar. É como querer reformar os móveis de uma sala e tirar apenas a poeira do mobiliário”.
A opinião do delegado, analisada sob o ponto de vista prático, é extremamente pragmática e condizente com a realidade. De fato observamos diariamente em noticiários, publicações e redes sociais que casos de corrupção dentro de corporações policias, poder judiciário, executivo e legislativo relacionam-se diretamente com a intrincada rede do tráfico de drogas, além de corroborar para a descrença da população nas instituições Estatais. 
No entanto, apesar do artigo ser esclarecedor em muitos aspectos, esquece de levar em conta alguns requisitos históricos, econômicos e sociais[1] essenciais a compreensão do tema, e revela um erro crasso –além de proposital- cometido pela grande maioria de nossos governantes e gestores de políticas públicas no que tange a complexa estrutura do crime organizado (mais precisamente aquele ligado ao tráfico de drogas): a corrupção não é necessariamente a causa principal e nem a única que sustenta o tráfico de drogas em seus moldes atuais. Esta é uma visão parcial do problema, que se encontra em evidência principalmente depois do sucesso conquistado pelo filme Tropa de Elite 2- O inimigo agora é outro.
As nefastas práticas abusivas executadas por policias e outros agentes governamentais, tais como tortura, execuções e espancamentos, pouco discutidas na grande mídia e tidas muitas vezes como naturais e heróicas[2] possuem também papel fundamental, exercendo forte influência  na manutenção deste problema social.
Para iniciar uma discussão um pouco mais abrangente sobre o tema, há que se diferenciar duas palavras tidas por muitos como sinônimos em nosso cotidiano: vingança e retribuição. A função do Estado- representado na seara criminal pela polícia preventiva, judiciária, Poder Judiciário e Ministério Público- é a de julgar e aplicar – ou não- penas que retribuam[3] de forma proporcional a conduta lesiva efetuada pelo criminoso. Para tanto, quando do julgamento e aplicação das penas deve haver respeito a procedimentos e princípios positivados em códigos e leis, que estabelecem as diretrizes necessárias para que a retribuição estatal não extrapole seus limites e se torne arbitrária e prejudicial. Enquanto que a vingança, por outro lado, devido a seu caráter pessoal e imprevisível, é prática absolutamente incompatível com qualquer ação pública ou estatal. Seu fundamento é a retribuição desmedida, ilimitada, proporcional apenas a subjetividade do agente que a executa.
Aplicando estes conceitos a episódios cotidianos de violência e repressão, endereçados a parcela marginalizada de nossa população, com os quais temos contato corriqueiramente[4], fica evidente que em inúmeros casos é praticamente impossível distinguir ações retributivas de ações vingativas, principalmente em se tratando de práticas policiais. Tais práticas muitas vezes vêm acompanhadas e legitimadas por discursos de defesa da justiça e da ordem Estatal, que enaltecem um comportamento completamente ilegal e truculento por parte dos agentes estatais.
 Conclui-se daí que infelizmente há arraigada em nossa cultura política a crença de que “bandido bom é o bandido morto” [5] (lógica vingativa, por excelência). Para muitos brasileiros é preferível executar, torturar e ocultar o corpo de um inocente – ou até mesmo de um culpado- a fim de exibir a captura de um grande traficante como troféu e dar uma boa “lição” (?) no criminoso, a obedecer ao que foi estabelecido por nossas leis, que quando aplicadas acabam sendo classificadas como “ direitos humanos para vagabundos”.   
Ora, se nem mesmo os “agentes máximos da segurança estatal” aplicam de forma igualitária princípios básicos de um Estado Democrático de Direito, tais como o direito a vida, ao devido processo legal, ao contraditório, a dignidade da pessoa humana  etc. e muitas vezes “fazem justiça com suas próprias mãos”, como esperar que indivíduos que em sua grande maioria não tiveram qualquer tipo de educação cidadã ou jurídic,a e que convivem com tais práticas diariamente, não as assimilem (nem que seja de forma inconsciente) e as consideram passíveis de reprodução?     
           Bem, sei que a reflexão é árdua e implica na quebra de uma série de paradigmas(e preconceitos) infiltrados em nossa mente. Deixo-a, portanto, a cargo da sensibilidade de cada leitor.
Quanto a mim, acredito que de fato a corrupção estatal tem grande responsabilidade no fomento do tráfico de drogas e do crime organizado como um todo. Porém, enquanto nossos agentes estatais não repensarem sua forma de atuação e continuarem agindo de forma privada no trato de questões eminentemente públicas, que devem ser pensadas sob a ótica de um Estado Democrático de Direito, continuaremos fomentando diariamente pequenos e perigosos estados de exceção [6], com ou sem corrupção.


[1] O livro “Abusado- O Dono do Morro Santa Marta” de Caco Barcellos (Editora Record, 560 paginas) oferece uma visão fantástica, minuciosa e desprovida de preconceitos e lugares comuns sobre o trafico de drogas no Rio de Janeiro.
[2] Recordemo-nos do filme “Tropa de Elite”, que consagrou o truculento Capitão Nascimento como herói nacional.
[3] Importante ressaltar que a retribuição não e tida com a única função da pena. Existem inúmeras teorias e escolas que refutam tal entendimento. VIDE Capitulo V- As funções da pena no Estado Democrático de Direito, inserido no livro “TRATADO DE DIREITO PENAL, Parte geral” de Cesar Roberto Bittencout.
[4] http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5468347-EI5030,00-Rio+de+Janeiro+ocupacao+da+favela+da+Rocinha+e+iniciada.html
[5] VIDE livro “JUSTICA-Pensado alto sobre violência, crime e castigo” de Luiz Eduardo Soares -autor de Elite da Tropa 1 e 2. (Editora Nova Fronteira, 196 paginas)
[6] VIDE livro “Estado de Exceção” do filosofo italiano Giorgio Agambem (Editora Boitempo, 142 paginas)